quarta-feira, 18 de dezembro de 2013



Se o fio acaba nos dedos, o fio vivo, se os dedos
não chegam à alma do tecido
onde coloca tudo, o convexo e côncavo, os elementos
nobres, ar em redor da cabeça, fogo
que o ar sustenta,
e os remoinhos trazidos ao tecido pela fusão dos dedos da matéria
nascente -
se o bafo atiça a trama em que trabalha as fibras:
tem de arrancá-las: nervos,
cartilagens, linhas
de glóbulos: tem de coá-la, à substância difícil, torná-la
dúctil, dócil
pronta
para o jeito dos dedos e a força da boca:
dar respiração desde o começo
do fio ao extremo - se o fio é longo
para aquilo que ele com mão técnica toda adentro põe e tira
do recôndito, se um como que brilho de hélio
é muito para bexiga,
língua,
cerebelo -
que deixe o corpo tapado porque hão-de um dia abri-lo
num abalo, o pneuma por um cano de ouro,
astros em bruto,
o escuro
- e esses dedos mexendo em medidas de sangue,
peso de osso.

Nem sempre se tem a voltagem das coisas: mesa aqui, fogão aceso,
torneiras fechadas com aquela assombrosa massa de água
atrás, à espera,
roupas, madeiras, livros.
Oh como alguém espera que a luz se levante asperamente até à cara.
Ou se espera ver em alguém assim
tocado ver
o sangue nos orifícios da cabeça, ou
melhor:
amígdalas, palato, língua, a voz tratada a sangue e rapidez.
E a maneira de andar na escuridão soba as gotas,
cuidar da ferida, cuidar
da gramática, árduo cuidar, quem
pensaria?, cuidar da música,
do mundo.
Há um azul selvagem defronte se alguém se vira,
nas costas rebenta a espuma.
Que sim, que os elementos através da casa: um espaço
na beleza: água atrás das paredes,
fogo nas botijas,
cristal nas unhas.
Mantém o nome, tu, o gás cingido pelos aros de ferro, mesa
e papéis, a morte atenta, mantém-na, tarda, não
tarda, abertas, fechadas
as torneiras.
Oh mundo escrito dolorosamente nas faixas de seda
saída de bichos como que
plenos, em brasa, mas
macios, saída
do âmago dos bichos.
Quem morre morre, tão fulgurante nas mãos e na testa.
O bafo trabalha nas linhas perigosas.
A estrela estala.


em O Corpo O Luxo A Obra, Herberto Helder, 1978 

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