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sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014



NADA MAIS - RIEN NE VA PLUS


Na alienação que é o pensamento
as coisas escorrem pelos dedos abaixo
a matéria, a «phisis»
tudo nos escorre pelos dedos abaixo
na alienação que é o pensamento
Dominam-se as coisas até onde o céu
pode ser aberto
e a geometria uma realidade nossa
para limitar o espaço
A cabeça em limites
onde um limite um ser
uma coisa
e tudo cá dentro cá dentro cá dentro
até onde um limite
ainda torna possível a existência
dum outro por abrir
Hoje o céu é novo é diferente
é dormir e acordar de novo para as coisas
o céu os pássaros
a fantasia dos pássaros
Hoje é o céu novo o céu novo
hoje é a Grécia de ontem
foi ontem a Grécia
mas a Grécia ainda é hoje
é hoje porque é dormir e acordar de novo para as coisas
achá-las vê-las
cumprimentar as coisas com bons dias ao Sol
bom dia meu irmão
ressuscitar um morto
dizer aqui S. Francisco de Assis
aqui a cabeça cheia de vento
a graça as flores
o vento na cabeça
a cabeça a janela
aberta aberta
de S. Francisco de Assis
Hoje é dizer fui ontem mas ainda sou amanhã
amanhã amanhã
amanhã até onde o céu for aberto
e até onde a Estrela Polar distante distante
Hoje é dormir cantar
dormir com uma canção na cabeça
dizer boa noite meu amor meus astros minha esfera
amanhã outra vez amanhã de novo te conheço
ressuscito para as coisas
e assim o sono a existência o momento que passa
e nada mais
porque nada mais meu bom Sartre na verdade
nada mais que o momento
conta senão para nós.


António Gancho, O ar da manhã
Lisboa: Assírio & Alvim, 1995

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Juan Gelman (1930-2014)

EL JUEGO EN QUE ANDAMOS
Si me dieran a elegir, yo elegiría
esta salud de saber que estamos muy enfermos,
esta dicha de andar tan infelices.
Si me dieran a elegir, yo elegiría
esta inocencia de no ser un inocente,
esta pureza en que ando por impuro.
Si me dieran a elegir, yo elegiría
este amor con que odio,
esta esperanza que come panes desesperados.
Aquí pasa, señores,
que me juego la muerte.
Del libro El juego en que andamos (Buenos Aires, 1956-1958)

GOTÁN
Esa mujer se parecía a la palabra nunca,
desde la nuca le subía un encanto particular,
una especie de olvido donde guardar los ojos,
esa mujer se me instalaba en el costado izquierdo.
Atención atención yo gritaba atención
pero ella invadía como el amor, como la noche,
las últimas señales que hice para el otoño
se acostaron tranquilas bajo el oleaje de sus manos.
Dentro de mí estallaron ruidos secos,
caían a pedazos la furia, la tristeza,
la señora llovía dulcemente
sobre mis huesos parados en la soledad.
Cuando se fue yo tiritaba como un condenado,
con un cuchillo brusco me maté
voy a pasar toda la muerte tendido con su nombre,
él moverá mi boca por la última vez.
Del libro Gotán (Buenos Aires, 1962)

CONFIANZAS
se sienta a la mesa y escribe
«con este poema no tomaras el poder » dice
«con estos versos no harás la Revolución » dice
«ni con miles de versos harás la Revolución » dice

y más: esos versos no han de servirle para
que peones maestros hacheros vivan mejor
coman mejor o el mismo coma viva mejor
ni para enamorar a una le servirán

no ganara plata con ellos
no entrara al cine gratis con ellos
no le darán ropa por ellos
no conseguirá tabaco o vino por ellos

ni papagayos ni bufandas ni barcos
ni toros ni paraguas conseguirá por ellos
si por ellos fuera la lluvia lo mojara
no alcanzara perdón o gracia por ellos

«con este poema no tomaras el poder » dice
«con estos versos no harás la Revolución » dice
«ni con miles de versos harás la Revolución » dice
se sienta a la mesa y escribe
Del libro Relaciones (Buenos Aires, 1971-1973)

EL EXPULSADO
me echaron del palacio/
no me importó/
me desterraron de mi tierra/
caminé por la tierra/
me deportaron de mi lengua/
ella me acompañó/
me apartaste de vos/
y se me pegan los huesos/
me abrasan llamas vivas/
estoy expulsado de mí.
yehuda al-harizi (1170-1237/toledo-provenza-palestina
Del libro Com/posiciones (Paris, 1984-1985)

REGRESOS
La palabra que
cruzó el horror, ¿qué hace?
¿Pasa los campos del delirio
sin protección?
¿Se amansa? ¿Se pudre?
¿No quiere tener alma?
¿Amora todavía, torturada y violada,
tiene figuras remotas
donde un niño de espanto calla?
La palabra
que vuelve del horror, ¿lo nombra
en el infierno de su inocencia?
Del libro Valer la pena (México, 1996-2000)

domingo, 12 de janeiro de 2014



Ergues o olhar:

surpreendes por instantes essa hora em que o mundo envelhece

ténues as variações do branco parecem dissolvê-lo

numa longínqua música, anterior à chuva.

Ou será então a imagem submersa de um filme a preto e branco

Há próximo um branco vibrante:

o da cal ainda recente mas que a humidade salina já a espaços mordeu,

recortando as feridas cinza na varanda a que vens.




Não há ninguém aqui. Quem te chame, digo.


Há o branco baço na parede que em frente em vão separ a rua e praia.

Tendo já transposto essa fronteira incerta ou erguendo-se para lá dela.

Há o branco pobre da areia.

As dunas planetárias sustentam os corpos deitados de mar e céu.

Aí é agora o grande branco:

o clarão velado e difuso que guarda e distribui a memória embaciada

do azul e do verde, do oiro e da prata -

uma lembrança vã.

Tu escreves no visível do mundo essa névoa branca e desolada

que o motor da paisagem produz.

As folhas do ar são como se fome

as levíssimas pétalas,

as vagas sílabas de uma neve -

e essa névoa engolfa, atrasa e apaga na travessia dos simulacros

das coisas supostas e imaginadas que o mundo te envia

enquanto esperas por alguém que não virá.


Manuel Gusmão

domingo, 5 de janeiro de 2014

UM POEMA DE NUNO JÚDICE 

Quero dizer-te uma coisa simples:
a tua Ausência dói-me.
Refiro-me a essa dor que não
Magoa, que se limita à alma, mas que não deixa,
Por isso, de deixar alguns sinais - um peso Nos olhos, no lugar da tua imagem, e
Um vazio nas mãos, como se tuas mãos lhes
Tivessem roubado o tato. São estas as formas
Do amor, podia dizer-te; e acrescentar que
As coisas simples também podem ser complicadas,
Quando nos damos conta da diferença entre o sonho e a realidade.
Porém, é o sonho que me traz à tua memória; e a
Realidade aproxima-te de ti, agora que
Os dias que correm mais depressa, e as palavras
Ficam presas numa refração de instantes,
Quando a tua voz me chama de dentro de
Mim - e me faz responder-te uma coisa simples,
Como dizer que a tua ausência me dói.
Como voltar feliz ao meu trabalho 
se a noite não me deu nenhum sossego? 
A noite, o dia, cartas dum baralho 
sempre trocadas neste jogo cego. 
Eles dois, inimigos de mãos dadas, 
me torturam, envolvem no seu cerco 
de fadiga, de dúbias madrugadas: 
e tu, quanto mais sofro mais te perco. 
Digo ao dia que brilhas para ele, 
que desfazes as nuvens do seu rosto; 
digo à noite sem estrelas que és o mel 
na sua pele escura: o oiro, o gosto. 
    Mas dia a dia alonga-se a jornada 
    e cada noite a noite é mais fechada. 

William Shakespeare, in "Sonetos" 
Tradução de Carlos de Oliveira
Escrever a preto
que o azul afundou-se no profundo Oceano dessa mesma intensa coloração que também governa
Céu e Terra em parcelas desiguais.

E que se segue agora?
Dias sem fim...
Idas sem volta...
Inolvidáveis janelas abertas à tona das águas
em Noites que não mais negras
apenas longas.

© Copyright Migalhas (100NEXUS_2014)

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014



Lua fria -
o vento do ribeiro
aguça os rochedos.

Miura Chora (1729-1780)
...

O frio, o frio -
até o azul se arrepia
no céu e nas águas.

Natsumu Sôseki (1865-1915)
...

Do dia um, a manhã -
na lareira algumas
brasas do ano findo.

Hino Sôjô (1901-1956)


Poema dum Funcionário Cansado


A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só.

António Ramos Rosa

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quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

há uma terra dentro das palavras,
o erro musical.
saberás que a linguagem
não começou ainda

o seu passo perdulário,
não há, no mundo, modos
de dizer o movimento e o imóvel,
o surgir repetido, e quando a água

se levanta sobre as bocas
dos animais,

esta impressão apenas digital
de nenhum sopro,
o liso, limpo silêncio, o frívolo,
o estremecer dos flancos na brancura.

António Franco Alexandre, Poemas (Assírio & Alvim)
e a música, a música, quando, como, em que termos extremos
a ouvirei eu,
e ela me salvará da perda da terra, águas que a percorrem,
tão primeiras para o corpo mergulhado,
magníficas,
desmoronadas,
marítimas,
e que eu desapareça na luz delas -
só música ao mesmo tempo nos instrumentos todos,
curto poema completo,
com o autor cá fora salvo no derradeiro instante
numa poalha luminosa?

___________________________________________
Herberto Helder, in "Servidões", Assírio & Alvim


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quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

As flores nascem, amadurecem, completam-se,
abrem corolas.
- De dentro de ti saem as flores do canto:
derrama-las sobre os homens, sobre eles as esparzes:
tu és cantor!
- Fruí do canto, todos vós,
fruí, dançai, entre as flores respira o canto:
e eu, cantor, respiro no meu canto!

Poemas Ameríndios
mudados para português
Herberto Helder"

.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

DESTA MANEIRA FALOU ULISSES...

Falo por mim, e por ti me calo
De modo que fica tudo entre nós
Literatura que faço, me fazes
ó palavras! - mas eu onde estou ou quem?

É isto falar, caminhar? ("Ως ἐραὺ) - Volto
para casa para a pátria pura página
interior onde a voz dorme o
seu sono que as larvas povoam

Aí, no fundo da morte, se celebram
as chamadas núpcias literárias, o encontro do
escritor com o seu silêncio. Escrevo para casa
Conto estas aventuras extraordinárias

Manuel António Pina in "Ainda Não é o Fim / Nem o Princípio do Mundo /Calma / É Apenas um Pouco Tarde" ed. Erva Daninha, p.23, 1982, Porto.

domingo, 29 de dezembro de 2013

Se é dever dizer o que
sem mestre aprendi da
vida digo:
a natureza tem tudo
mas cada coisa de
sua vez.
É simultânea como o
conhecimento:
sabe-se bem uma coisa
por causa de várias
que se sabem mal.
E tive paz quando
soube que antigos
me tinham deixado
isto mesmo.


ALMADA NEGREIROS


UM POEMA DE JORGE LUÍS BORGES

Diz-me por favor onde não estás
em qual lugar posso não te ver,
onde posso dormir sem te lembrar
e onde relembrar sem que me doa.

Diz-me por favor onde posso caminhar
sem encontrar as tuas pegadas,
onde posso correr sem que te veja
e onde descansar com a minha tristeza.

Diz-me por favor qual é o céu
que não tem o calor do teu olhar
e qual é o sol que tem luz apenas
e não a sensação de que me chamas.

Diz-me por favor qual é o lugar
em que não deixaste a tua presença.
Diz-me por favor onde no meu travesseiro
não tem escondida uma lembrança tua.

Diz-me por favor qual é a noite
em que não virás velar meus sonhos.
Que não posso viver porque te espero
e não posso morrer porque te amo.
Iremos juntos sozinhos pela areia
Embalados no dia
Colhendo as algas roxas e os corais
Que na praia deixou a maré cheia.

As palavras que disseres e que eu disser
Serão somente as palavras que há nas coisas
Virás comigo desumanamente
Como vêm as ondas com o vento.

O belo dia liso como um linho
Interminável será sem um defeito
Cheio de imagens e conhecimento."

Sophia de Mello Breyner Andresen
Nocturnamente


Nocturnamente te construo
para que sejas palavra do meu corpo

Peito que em mim respira
olhar em que me despojo
na rouquidão da tua carne
me inicio
me anuncio
e me denuncio

Sabes agora para o que venho
e por isso me desconheces"
Mia Couto
"MÚSICA 

Depois do sangue misturado,
depois dos dentes, dos lamentos,
estamos deitados, lado a lado,
e desfolhamos sofrimentos.
Temos trint'anos, mais trezentos
de sofredora exaltação.
É este o cabo dos tormentos?
Ai, não e não! Ainda não.
Saboreamos o passado
por entre os beijos mais violentos
e mais subtis que temos dado.
E o monumento dos momentos
oscila, desde os fundamentos,
a tão febril consagração.
Mas estacamos, sonolentos.
Agora, não. Ainda não ...
Tudo se torna esbranquiçado:
eram azuis, são já cinzentos
os horizontes do pecado ...
Há nos teus ombros turbulentos
cintilações, pressentimentos ...
Os nossos corpos descerão
para que abismos lamacentos?
Ah! não, e não! Ainda não!
Eis-vos, de novo, movimentos
que apunhalais a inquietação!
E assim unidos gritaremos
que não e não! que ainda não!"-

David Mourão-Ferreira
Súplica

Agora que o silêncio é um mar sem ondas, 
E que nele posso navegar sem rumo, 
Não respondas 
Às urgentes perguntas 
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.



Miguel Torga
"Sonhar o sonho impossível
Sofrer a angústia implacável
Pisar onde os bravos não ousam
Reparar o mal irreparável
Amar um amor casto à distância
Enfrentar o inimigo invencível
Tentar quando as forças se esvaem
Alcançar a estrela inatingível:
Essa é a minha busca."

- Cervantes, In 'Dom Quixote'
ROTEIRO DO SILÊNCIO

Não há silêncio bastante
Para o meu silêncio....
Nas prisões e nos conventos
Nas igrejas e na noite
Não há silêncio bastante
Para o meu silêncio.

Os amantes no quarto.
Os ratos no muro.
A menina
Nos longos corredores do colégio.
Todos os cães perdidos
Pelos quais tenho sofrido:
O meu silêncio é maior
Que toda solidão
E que todo silêncio.

Hilda Hilst