----> O capitalista até disfarça os trabalhadores de capitalistas, quando dá jeito.
A SIC Notícias tem-nos presenteado com uma série de programas intitulados «Por Onde Vamos», onde, com intensidade particularmente maior do que a visível no resto da programação, nos brinda com laudas aos empresários, aos empreendedores aspirantes a empresários, e condenações dos desempregados, trabalhadores, estudantes, e pobres em geral que não almejem ser empresários ou empreendedores aspirantes a empresários, gente esquisita que quer trabalhar por um salário e não tem o espírito de iniciativa dinâmico e proactivo que o novo paradigma económico impõe.
Na sessão propagandística de hoje fomos brindados com um programa sobre agricultura. A direita sempre gostou de nos falar da lavoura e dos lavradores, do campo e das suas virtudes. Mas agora a coisa descreveu uma evolução interessante: em vez das salutares tradições rurais, com eiras e cantares minhotos, oferecem-nos uma espécie de «peasant chic», de lado estiloso das agruras do trabalho na terra. Sobram ainda ressaibos do antigamente (os mortos agarram os vivos…), como um jornalista que pergunta se as pessoas não preferirão o subsídio de desemprego ao trabalho na agricultura. Mas esta gente esforça-se por criar um quadro mais bonito, sofisticado, nova-iorquino até, do trabalho no campo. É possível, asseguram, trabalhar a terra – ou, vá, mandar noutros que nela trabalhem: curiosamente, nenhum trabalhador agrícola foi entrevistado ou sequer avistado em mais de uma hora de emissão – e ainda assim ficar bonito num «blaser» novo. Basta seguir a receita bondosamente fornecida pelos «exemplos de sucesso» do sector e, já o sabemos e eles no-lo repetem fastidiosamente e com a arrastada cadência das procissões, ser empreendedor e dinâmico e criativo e proactivo.
A receita começa bem, sugerindo que, se ser assalariado é mau, ser pequeno proprietário não é melhor. Perdi a conta ao número de vezes em que a questão da «escala» foi denunciada por jornalistas que entrevistavam, entrevistados que concordavam, jornalistas que referiam dados, entrevistados que afiançavam confirmá-lo com experiência própria, e de novo jornalistas que noticiavam esta informação objectiva. Como certa vez disse Alexandre Soares dos Santos em entrevista, «os nossos agricultores precisam perceber que no mundo moderno só existe agricultura em latifúndio». A SIC Notícias auxilia essa compreensão.
Isto, confesso, até me confortou: há anos atrás, envolvido numa luta discussão sobre precariedade, fui interpelado por um pequeno empresário que me perguntava como podia ele, com uma pequena fábrica têxtil, custear todos os direitos consagrados em lei dos vários trabalhadores que tinha a cargo [sic], e se não era preferível mantê-los, como confessou que mantinha, a recibo verde, ganhando algum dinheiro afinal, em vez de vegetarem no desemprego. Redargui que o capitalismo tem duas soluções naturais para as empresas insubsistentes (e uma empresa que não pode pagar salários que reproduzam a força de trabalho que consome é insubsistente): a associação de capitais ou a deglutição por um concorrente maior. Clamou o homem que não conhecia «a mentalidade» dos empresários por propor a associação num país avesso a ela. Vejo-me acompanhado nesta ignorância, e por ninguém menos que os jornalistas da SIC Notícias. Mas suponho que a estes conselhos já o empresário em questão não fizesse ouvidos moucos, porquanto era acrescentado ao princípio da associação a palavra mágica dos nossos dias – exportação.
Com uma ingenuidade tocante, alguma esquerda tem dito que o capitalismo prepara a sua própria destruição com o empobrecimento generalizado a que vota os trabalhadores. Este é um puro engano. Durante mais de 100 anos o capitalismo viveu e viveu fartamente praticando salários de uma ominosa miséria, pouco acima do estritamente necessário à sobrevivência física do trabalhador e dos seus descendentes. E fazia-o por expediente simples: garantindo que o que se produzia num lado era consumido noutro. Que não tinha de assegurar que quem produzia tinha de levar para casa um salário que lhe permitisse comprar o produto do seu trabalho. Esse é, aliás, até hoje, o modo de fazer as coisas na Malásia, na Tailândia, na Indonésia, em múltiplos países do Sudeste Asiático. E é o caminho que entre nós se propõe para a retoma económica: produzir para vender aos outros, reduzir os ordenados cá. E produzir o quê? Evidentemente, aquilo que tenha o menor valor acrescentado possível: nos polos urbanos, como tem dito o meu camarada Pedro Carvalho, candidato à Câmara Municipal do Porto, «cidades-disneylândia» para turista ver; no resto do país, tomates e batatas, ou, na «indústria», sumos, batatas fritas congeladas, polpa de tomate, cerveja. É a versão burguesa do investimento no tecido produtivo: pôr desgraçados a cavar terra ou a empenhar-se para levantar fabriquetas de vão de escada onde fabriquem frascos de «ketchup» para Angola. O que importa é que seja exportável e possa viver ou de salários miseráveis ou de uma massa de trabalhadores aos quais nem sequer seja preciso pagar salário porque voluntariamente se endividam para produzir uma meia dúzia de garrafas de vinho, uns sacos de cebolas, uma meia dúzia de frangos de aviário. Cedo ou tarde, pelo ruinoso da experiência, terão de ir parar ao call-center para pagar uma prestação. E quanto aos funcionários que arranjem, serão tão precários como os do Continente: como se poderá, então, exigir que o Estado aplique a lei à SONAE quando dez mil pequenos empresários clamam pela suavização do Direito do Trabalho, sedentos de um pequeno aumento na sua margem de lucro?
O retorno a uma semiproletarização de pequenos proprietários ciosos dos escassíssimos capitais que têm e condenados à subjugação ao poder férreo da burguesia nacional e do imperialismo é, continua a ser, o projecto. Já fez as delícias de quem manda há 80 anos, e agora regressa, disfarçado de coisa «yuppie». Na lavoura há, então, um interface de todos os aspectos que podem sustentar o retorno a esse modelo. O jovem-empresário-endividado-associado-a-mil-outros-tão-endividados-ou-mais-que-sonha-ser-rico-e-nunca-lá-chega-e-portanto-tem-de-trabalhar-para-o-Belmiro-recorrentemente é mais uma faceta do proletário do futuro. O capitalista até disfarça os trabalhadores de capitalistas, quando dá jeito.
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