terça-feira, 22 de abril de 2008

Além



Além


É mais fácil ficar quando o infinito
nos embarga a voz.

Mais seguro seguir viagem
na certeza de que somos frágeis e precários.

A beleza do mundo esvai-se nas sombras,
e nós só temos de saber que é assim,
que o tempo voa num ápice,
mas que a primavera retorna sempre
nas asas de pássaros musicais,
e não adianta perseguir a memória.

Serei como as borboletas: procurarei tudo
sem querer saber nada,
deixarei que o amor me responda com luz,
contemplarei cada instante,
esquecer-me-ei do mundo lá fora,
E por poucos haveres que possua
celebrarei a vida em cada hora.



/ 22-04-2008 /


...aj c.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008



A minha luta é esta:

sagrado de saudade

divagar pelos dias.

Depois, largo e forte,

com mil raízes fundo

mergulhar vida dentro -

e, amadurecido em dor,

ir longe pra além da vida,

longe pra além do tempo!





Rainer Maria Rilke (1875-1926)

Primeiros Poemas. Advento (1898)

In Poemas, I (Coimbra, 1942) (pref., selec. e trad. de P. Quintela)

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008



Calai os versos abstractos

E a mansidão dos olhos que têm os bois pacatos.



Calai tanto, tanto espírito na terra,

E a cristianíssima paz que nos faz guerra.



Calai, promessas de anjo, o céu sublime,

Quando as mãos, cheias de oiro, trazem máscaras de crime.



Calai loas de amor às crianças maltrapilhas

Que esses farrapos de alma não lhes cobrem as virilhas.



Calai as lágrimas à beira dos enfermos:

Prefiro a solidão que é soluço nos ermos.



Calai, palhinhas de Jesus, que sois o ai de quem ama:

Paz na terra e no céu: ao cristão, ao judeu, e à gentílica moirama.



Calai-vos, bêbados aos bordos nas estradas:

Para matar tristezas, Nossa Senhora das Dores com suas sete espadas.





Afonso Duarte (1884-1958)

Ossadas




In Obra poética

terça-feira, 1 de janeiro de 2008



Recordação



Eu bem sei

Que rodo em muitas esferas,

E não sei

Por onde me levas, poesia.



Quando vou,

E não encontro ninguém,

Tenho medo do que sei:

Um filho de sua mãe

E seu pai,

Ou algum longínquo avô,

A quem um poeta sai.



Será também o Deus da infância

E a árvore sagrada

De frutos proibidos,

Na fragrância

Com que rasguei meus vestidos

E não retirei os ninhos...



Enchi de rosas a terra

E levo nas mãos espinhos.





Afonso Duarte (1884-1958)

Post-Scriptum de um combatente

In Obra Poética